eu sou

eu sou
aquilo que faço
quando não tenho nada pra fazer

Sobre a Empatia Incondicional

Sobre a Empatia Incondicional
Para Satish Kumar, a empatia é o princípio organizacional da vida

Satish Kumar

Nos último 10 anos, tenho visitado a ilha de Maiorca, a convite de meu amigo Guillem Ferrer. Certa vez, ele me pediu para falar sobre um ideal que guiasse as minhas atividades. Eu disse que a coisa mais importante na minha vida era a amizade. Todo meu trabalho vem da amizade.

A amizade é o meu principio primordial, o ganha-pão da minha vida. Vivo através da amizade. Para mim, a amizade é a qualidade espiritual suprema. A amizade é incondicional – não há desculpas. A amizade não tem motivo. Você não diz: eu sou seu amigo porque você é isso ou aquilo. Por que você é culto, rico, inteligente, bonito, ou “bom de papo”. Essas coisas não vêm a sua mente. Você tem um amigo por que você quer ser um amigo. Amizade diz respeito a aceitação, não a expectativa. Você presenteia e é presenteado. A amizade tem suas raízes na profunda gratidão.

Na amizade, diz-se apena “sim”. Quando um amigo pede alguma coisa é difícil dizer não. Se algum amigo me pede ajuda, eu digo “sim”. E se eu peço algo a um amigo, ele me diz “sim”.

Minha amizade não é direcionada apenas aos seres humanos. Eu também sinto amizade para com a Natureza. Sou um amigo do meu lar e do meu jardim. Amigo das árvores e das flores. Das abelhas. Amigo de cada minhoca, lesma e caracol. As ervas-daninhas são minhas amigas. Amizade é um termo que a maioria das pessoas usa apenas para as relações humanas, mas eu uso num sentido mais amplo.

Meus filho são meus amigos. Na Índia, dizemos que quando um filho completa 16 anos ele não é mais seu filho: é seu amigo. “Amigo” é melhor que “filho” ou “filha”, porque “filho” ou “filha” são termos que carregam expectativas. Espera-se algo dos filhos. Eles esperam algo dos pais. Como amigo, você não espera nada. Você os trata com respeito. Da mesma maneira acontece com minha esposa. Ela é minha amiga. Não temos uma relação de posse. O amor liberta. Não há nenhuma imposição, nem amarra numa união vista dessa forma.

O vilarejo em que eu vivo é meu amigo. Eu o aceito como ele é. Não incorro em julgamentos. Amo seu povo, seus vales e árvores. Amo a paisagem natural. Como vivo perto do oceano, tenho o oceano como meu amigo também. Dessa forma, todo o planeta é meu amigo e, por que não, todo o mundo. Toda transformação que eu tento fazer em minha vida, em minha sociedade e no mundo, faço-a com um sentimento de amizade. O mundo é belo, mas, dentro dele, criamos alguns sistemas que precisam ser reformulados. Minha casa é minha amiga, portanto eu a limpo, conserto, pinto, porque depois de um tempo ela precisa de reparos e de reformas. Meu jardim precisa de reformas. Da mesma forma, a política precisa de reforma. Sendo assim, eu trabalho para criar renovação na política e renovação na economia.

Quando meu corpo precisa se reparar e se curar, eu procuro repará-lo e curá-lo. O mundo é meu corpo e a sociedade é meu corpo. Nesse sentido, meu trabalho é o de um curador amigo. Meu trabalho na Small School1 é um trabalho de amizade para com as crianças. Meu trabalho na revista Resurgence & Ecologist é um ato de amizade com os leitores. Meu trabalho no Schumacher College é um ato de amizade para promover ecologia e espiritualidade no mundo. Com meditação, boa comida e relaxamento, eu curo meu corpo. Quando estou elétrico e cansado, digo ao meu corpo: vamos com calma, relaxe e durma um pouco. Da mesma forma digo à sociedade: durma um pouco, diminua o ritmo, não trabalhe tão duro e tão depressa. Buda disse: “Se você traça sua rota com pressa e sob pressão, você se perde no caminho.”

Na amizade, não há expectativas, nem apego, porque esses dois sentimentos levam à frustração. Eu vivo com leveza e pratico o desapego. Dessa forma, posso me manter em movimento: não estou preso, não há amarras. O desapego traz liberdade. Todo meu trabalho tem a sua raiz na profunda amizade pelas pessoas e pelo mundo. Eu e o mundo somos um. Quando estou trabalhando pela transformação do mundo, trabalho pelo transformação de mim mesmo. Quando expando a minha consciência, torno-me um ser maior, um “eu” universal. Nesse corpo, sou um microcosmo de um macrocosmo.

Então, é como amigo que digo ao senhor Obama: “Olhe para o senhor Putin e o veja como um amigo, para que os vossos conflitos se resolvam”. Eu digo ao senhor Putin: “Trate todos os ucranianos como seus amigos. Você é cristão. O que Jesus disse? “Amai-vos uns aos outros”. Eu digo ao senhor Netanyahu: “Vocês estão em guerra com os palestinos nos últimos 70 anos, o que conseguiram? Tentem, ao menos uma vez, a paz com a Palestina, para ver o que acontece. Através da amizade o sofrimento é atenuado”. Eu aconselho os palestinos: “Os judeus estão no exílio há 2000 anos. Agora, eles devem voltar para casa. Juntos vocês podem transformar a Palestina numa terra próspera”.

A melhor maneira para se ter amigos é sendo um amigo. A amizade é a resposta mais simples e direta para nossas agonias, ansiedades e angustias.

No campo da amizade, com minhas mãos humildes, enterro as sementes do amor. Espalho o adubo da ternura e irrigo o solo da minha alma, com a água da generosidade. Sou, enfim, abençoado com a fragrância do contentamento e os frutos da liberdade. Eu sou profundamente grato aos presentes que a vida me deu todos os dias. É agradável ser um amigo e uma benção ter amigos.

Com amizade e sinceridade em meu coração, caminhei mais de 12.000 quilômetros ao redor do mundo, sem um tostão no bolso. Caminhei por países comunistas, capitalistas, muçulmanos, cristãos e, por todo lugar que passei, obtive alimento, abrigo e amor. Se eu tivesse saído como um indiano, iria encontrar um paquistanês ou um russo. Se tivesse andado como um hindu, encontraria cristãos e muçulmanos. Mas eu viajei como um ser humano e encontrei seres humanos em toda parte. Minha caminhada foi um ato de amizade.

Se somos russos ou americanos, judeus ou muçulmanos, xiitas ou sunitas, comunistas ou capitalistas, não importa o rótulo, somos, antes de mais nada e acima de tudo, seres humanos. Nossa identidade humana se sobrepõe às demais. É por isso que precisamos construir nossas relações, tanto pessoais, políticas ou ecológicas, sobre os fundamentos da amizade.

Quando Buda estava dando o seu último suspiro, Ananda o perguntou: “Como o senhor gostaria de reencarnar na próxima vida?” Buda respondeu: “Não como um profeta, um mestre, nem mesmo uma pessoa, mas como maitreya. Quero ser reencarnado como amizade, empatia e candor.

A amizade é o único ingrediente capaz de unificar a humanidade. Através da filosofia da amizade, percebemos, de verdade, que estamos todos conectados, relacionados, que somos interdependentes. O planeta Terra inteiro é nossa casa e somos membros dessa singular comunidade terrestre e da singular família humana.

Você pode me chamar de idealista. Sim, eu sou um idealista. O que os realistas conseguiram? Guerras? Pobreza? Mudanças Climáticas? Os realista têm governado o mundo há séculos e falharam na conquista de paz e prosperidade a todos. Então, porque não dar a chance aos idealistas e permitir que a amizade seja o princípio organizacional do nosso mundo? Podemos não ser, totalmente, bem-sucedidos. Podemos não alcançar a utopia, mas que nos seja permitido maximizar o poder da amizade e minimizar a força dos conflitos. Vale a pena tentar.

Trad.: Josemar Vidal Jr.

NOTAS:

1 Pequena escola criada por Satish Kumar, em Hartland, Devon. Tem capacidade máxima para 40 alunos, dos 11 à 16 anos.

dormir...

dormir
    quebrar a barreira do sono
            cruzar a linha de partida

entre o descanso
e o ócio
insisto

Mahavira, o "Buda" do Jainismo

Mahavira, o "Buda" do Jainismo


Sree Chitrabhanuji

Ilustração da parábola dos "cegos e do elefante",
usada para explicar o conceito de Anekantavada.
Tanto a violência como a não-violência começam por etapas. Os passos iniciais são sutis e se desenvolvem, pouco a pouco, em grandes atos de conflito ou compaixão.

Quando Nelson Mandela foi libertado da prisão, algumas pessoas o incentivaram a acertar as contas com quem lhe havia tratado de forma tão errônea – mas ele se recusou a ser dominado pelo ódio. Argumentou que, por muito tempo, já havia sido um prisioneiro de seus oponentes, fisicamente falando, e que não queria passar o resto de sua vida sendo um prisioneiro emocional.

O velho Mandela entendeu que, para projetar a raiva adiante, é preciso antes queimar-se por dentro; para impingir violência a outrem é preciso antes agir com violência a si próprio. Ao queimar o detentor do fogo, as chamas do ódio podem consumir a sua própria fonte, antes do adversário. Nos dias de hoje, se buscamos conquistar nossas emoções mais básicas, precisamos aprender com os exemplos de pessoas como Nelson Mandela, Mahatma Gandhi e Martin Luther King, que forjaram escolhas a partir do calor das batalhas mais tempestuosas da vida.

A ideia de ahimsa (ou não-violência) é uma ideia emancipadora. Não é apenas um conceito. Ela começa como um simples sentimento e pode crescer até abranger todas as esferas de uma vida. A ideia se metamorfoseia em sentimento. É esse sentimento que transforma o nosso em redor. A vida de Verdhamana Mahavira foi um exemplo de tal auto-realização. Ele inspirou outros com a sua maneira de ser, transmitindo sabedoria sem doutrinação.

Dessa maneira o verdadeiro conhecimento se faz possível. Uma pessoa com raiva abre sua boca e fecha seus olhos. É a nossa mente que precisa de controle. As guerras, eles dizem, começam nas mentes dos homens. Então, é lá que a paz precisa ser conquistada. Nossos sábios compreenderam essa simples verdade séculos atrás. Mahavira, um dos Tirtankharas, praticou o verdadeiro ahimsa sem pregar ao mundo.

Mahavira entendeu as raízes da violência na psiquê humana. Seu alerta, por conseguinte, foi contra o absolutismo e o dogmatismo. Sua enfase no conceito de Anekantavada foi um clamor ao reconhecimento da multifacetada natureza da realidade. A percepção da realidade depende do tempo, lugar, natureza e estado do observador. A verdade absoluta não pode resultar do ponto de vista de apenas uma pessoa. Absolutismo, para ele, era um ato de violência mental. Relativize o absoluto, ele pedia. Buscava o respeito de diferentes sistemas de crenças.

Anekantavada é a visão na qual o paradoxo dos opositores é integrado. Se olhamos para as coisas com equilíbrio, vamos descobrir que os opostos são complementares uns aos outros. Sem opostos, não há crescimento e consciência. Quando estamos cientes do ciclo dos opostos não os vemos como opostos, mas como algo compatível com o crescimento. Isso nos permite um relacionamento aberto com o mundo.

Mahavira falou sobre o impulso insensato de acumulação e em como isso engendra um sistema de violência em nossas vidas. Ele não era utópico ou fora da realidade. Ele queria que crescêssemos além do limite da ganância para abrir a possibilidade de transcendência de nossa linearidade. É apenas a transcendência do ego, que gera grande empatia, que podemos considerar como um grande princípio.

A compaixão de Mahavira se estendeu, além da humanidade, para todas as formas de vida. Tal posição o fez um irmão distante dos ambientalistas contemporâneos e dos ativistas dos direitos dos animais. Mahavira fala conosco no presente. Não é através do terror ou de bombas aéreas que vamos fazer do mundo um lugar mais seguro. Podemos fazer um lugar mais seguro transformando as consciências. Para essa transformação precisamos considerar a gentil e curativa mensagem de Mahavira.

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em toda parte
entorpecente

Violência e mudanças climáticas

Violência e mudanças climáticas

Instabilidade social e fome, super-tempestades e secas. Lugares, espécies e seres humanos – ninguém vai escapar. Bem-vindo ao “Ocupe a Terra”.

Rebecca Solnit

Se você for pobre, a única maneira de você machucar alguém é através do tradicional e antigo método, violência artesanal, ou seja: pelas mãos, com faca, com ripa, ou, talvez, uma forma de violência moderna, mais eficaz, com um revólver ou um carro.

Mas se você for estupidamente rico, você pode praticar violência em escala industrial, sem precisar sujar as mãos, literalmente falando. Pode construir, digamos, uma fábrica escravocrata em Bangladesh pronta para desmoronar e matar mais pessoas que um assassínio em massa, ou pode calcular os riscos e os benefícios de espalhar artefatos venenosos e inseguros pelo mundo, como os fabricantes fazem todos o dias. Se você é líder de um país, pode declarar guerra e matar centenas de milhares (ou milhões) de pessoas. E os superpoderosos nucleares – Estados Unidos e Rússia – ainda têm a opção de destruir boa parte da vida na terra.

Assim fazem os barões do petróleo. Mas quando falamos em violência, quase sempre falamos da violência vinda de baixo, não de cima.

Foi mais ou menos o que eu pensei quando recebi um comunicado, na última semana, de um grupo ligado ao clima anunciando: “cientistas afirmam que há uma relação direta entre mudanças climáticas e o aumento da violência”. O que os cientistas disseram, de fato, num artigo sem muitas novidades da Nature, de um ano e meio atrás, é que há mais conflitos nos trópicos em anos de El Niño, e que isso talvez vá se escalonar fazendo da nossa era de mudanças climáticas também uma era de conflitos.

A mensagem é de que o cidadão médio vai se comportar mal numa era de mudanças climáticas acentuadas.
Tudo isso faz sentido, a menos que você retroceda a premissa e perceba que mudança climática é, em si, uma forma de violência. Extrema, terrível, duradoura, ampla violência.

A mudança climática é antropogênica – causada por humanos, alguns mais que outros. Nós sabemos as consequências dessas mudanças: a acidificação dos oceanos e o declínio da maioria das espécies que vivem neles, o lento desaparecimento de ilhas-nações, como é o caso das Maldivas, o aumento de inundações, secas, a quebra na produção agrícola, o que leva ao aumento do preço dos alimentos e à fome, aumento da instabilidade climática. (É só pensar no furacão Sandy e no recente tufão nas Filipinas. Nas ondas de calor que mataram idosos aos milhares).

Mudança climática é violência.

Portanto, se nós queremos conversar sobre violência e mudanças climáticas – e nós estamos falando sobre isso, depois do informativo aterrador da última semana, vindo dos melhores cientistas climáticos do mundo – então vamos falar sobre mudanças climáticas como violência.

Ao invés de nos preocuparmos se os homens e mulheres comuns vão reagir com turbulência à destruição de seus meios de sobrevivência, vamos nos preocupar com essa destruição – e com a sobrevivência. Obviamente a escassez de água, as péssimas colheitas, inundações, entre outras coisas, vão desencadear migrações em massa e refugiados climáticos – eles já existem – e isso vai gerar conflitos. Esses conflitos estão entrando em ação, agora.

Você pode considerar a Primavera Árabe, em parte, como uma conflito climático: o aumento no preço do trigo foi um dos gatilhos para a série de revoltas que mexeram com o norte da África e com o Oriente Médio. Por um lado, você poderia dizer “que bom que essas pessoas não estão passando fome”. Por outro, como pode não dizer “quão grave é essa situação, que fez pessoas se insurgirem, desprovidas de garantias e esperança”. E, finalmente, é preciso olhar para o sistema que criou a fome – a descomunal desigualdade econômica em lugares como o Egito e a brutalidade usada para conter os manifestantes.
As pessoas se revoltam quando suas vidas estão insuportáveis. Por vezes, a realidade material cria essa sensação: secas, pragas, chuvas, inundações. Mas alimentação e assistência médica, saúde e bem-estar, moradia e educação – tudo isso é governado por relações econômicos e políticas governamentais. O “Occupy Wall Street” estava focado nisso.

As mudanças climáticas vão aumentar a fome, uma vez que o preço dos alimentos vai subir e a produção alimentar decrescer, mas nós já estamos promovendo a fome na Terra, e boa parte disso não é devido a falhas da natureza ou dos agricultores, mas por causa dos sistemas de distribuição. Nos Estados Unidos, cerca de 16 milhões de crianças vivem hoje com fome, de acordo com o Departamento de Agricultura americano, e isso não acontece porque o vasto e rico setor agrícola estadunidense não consegue alimentar a todos. Nós somos um país cujo sistema de distribuição é, ele mesmo, um tipo de violência.

As mudanças climáticas não vão, repentinamente, trazer uma era de distribuição equânime. Creio que as pessoas vão se revoltar, no futuro, contra o que elas se revoltaram no passado: as injustiças do sistema. E elas precisam se revoltar, e nós precisamos nos alegrar com isso, já que não podemos ter a alegria de não precisar fazê-lo. Um dos eventos propulsores da Revolução Francesa foi a falência da colheita de trigo, em 1788, o que fez o preço do pão ir às alturas e os pobres passarem fome.

Na mesma semana em que recebi o infeliz comunicado sobre clima e violência, o Grupo ExxonMobil divulgou um relatório de políticas. Uma leitura entediante, a não ser que você possa transformar a seca linguagem mercadológica em imagens das consequências dos atos perpetrados em função exclusiva do lucro. Como observa o relatório:

Nós estamos confiantes de que nenhuma de nossas reservas de hidrocarboneto estão ou irão 'encalhar'. Nós acreditamos que produzir esses bens é essencial para manter a crescente demanda de energia no mundo”.

Bens encalhados significa reservas de hidrocarboneto – carvão, óleo, gás – que podem perder o seu valor se for decidido que eles não devem mais ser extraídos e queimados num futuro próximo. Pois os cientistas dizem que precisamos deixar as reservas de petróleo debaixo da terra, se quisermos nos deparar com versões mais brandas das mudanças climáticas. Na versão branda, incontáveis pessoas e espécies vão sobreviver. No cenário otimista, o colapso da terra vai ser menor. O que se discute agora é quanto devastar a Terra.

Em qualquer atividade, é preciso observar a escala industrial e a violência sistêmica, não apenas a violência dos desapoderados, feita com as próprias mãos. Quando trazemos à tona as mudanças climáticas, isso soa particularmente verdadeiro. Exxon decidiu apostar na ideia de que não podemos fazer a corporação manter as suas reservas intactas e a companhia está tranquilizando seus investidores, pois eles vão continuar lucrando em cima da destruição da Terra, imediata e violenta.

Mas esse bordão já se tornou exaustivo, “a destruição da Terra”. Traduza-o para crianças famintas e terras inférteis – e depois multiplique alguns milhões de vezes. Ou apenas mentalize os pequenos bivalves: ostras, vieiras, caracóis que, no momento, não conseguem formar as suas carapaças por causa da acidificação dos oceanos. Ou pense em outra super-tempestade arrasando mais uma cidade. Mudança climática é violência em escala global, contra regiões e espécies, bem como contra seres humanos. Apenas chamando as coisas pelo seu verdadeiro nome é que podemos começar a ter um diálogo franco sobre nossas prioridades e valores. Porque a revolta contra a brutalidade começa com a revolta contra a linguagem que mascara essa brutalidade.


Trad. Josemar Vidal Jr.

Violência, democracia e religião

Violência, democracia e religião [1]

Satish Kumar

Desde 11 de setembro, a política mundial tem sido dominada pelo medo e insegurança. O terrorismo internacional tornou-se o centro espectral de nosso tempo. Mas os líderes políticos estão ocupados planejando ações que lidam, sobretudo, com os sintomas do terrorismo, ao invés das causas. Eles esperam que através do poder policial e militar, e outras medidas de segurança, serão capazes de erradicar o problema, ou, ao menos, contê-lo. Mas, se tomarmos a história como um guia, embora as tentativas (superficiais) de combater e suprimir o terrorismo deem uma aparência temporária de vitória, mais cedo ou mais tarde o terrorismo irá levantar a cabeça, não importa a forma em que se apresente.
Vejamos de que maneira a humanidade tem lidado, através dos séculos, com a violência, não-violência e o poder. Em como tais conceitos abarcam o fenômeno do terrorismo.
Quando nós observamos a história da política, encontramos três tipos de liderança. Na primeira categoria aparecem os líderes militares, conquistadores e ditadores, os quais acreditam que o poder surge por via das armas. Eles escolhem a violência como um caminho para o poder, mantêm o poder através da violência e, geralmente, morrem por meio da violência. Guerreiros famosos, como Alexandre “O Grande”, Gengis Khan, Saladino, Ricardo I (o “Coração de Leão”, líder das cruzadas), Napoleão, Hitler, Stalin, Saddam Hussein e Osama bin Laden figuram nessa categoria.
Os pertencentes a esse grupo argumentam usar a violência e a guerra apenas para sustentar valores como “islaminsmo”, “cristantade”, “liberdade” ou “democracia”. Eles escolhem o caminho da violência para atingir “bons” fins. Nessa visão, os fins justificam os meios. Mas, na verdade, “Deus”, “liberdade” e “democracia” tornam-se meras nuvens, por sob as quais eles escondem seus verdadeiros objetivos: ter poder e controle. Quem saberá dizer se a história não colocará líderes de guerra atuais, como George Bush e Tony Blair [2], nessa categoria?
Este tipo de liderança aposta suas últimas fichas no poder das armas e seu refúgio final é a guerra. Para eles, o direito do mais forte impera, apesar disso vir oculto atrás de grandes ideais.
A segunda categoria, no extremo oposto, é daqueles que escolhem a não-violência, do começo ao fim. Eles estão dispostos a arriscar suas vidas na busca do bem comum, pelo bem-estar de todos. Ao invés de desejar o poder sobre outros, eles querem compartilhar o poder, e empoderam a todos que encontram. Para eles, o verdadeiro poder é o poder do amor e da não-violência. Todos os outros poderes são ilusórios e enganosos. Nessa categoria, encontram-se Buda, Jesus Cristo, Mahavira, Mahatma Gandhi, Martin Luther King, Madre Tereza, Dalai Lama, Aung San Suu Kyi, para citar alguns.
A influência desses líderes é forte e duradoura. Corações e mentes de muitas gerações são alimentados, nutridos, inspirados, encantados e vitalizados pelo exemplo deles. Estes são os líderes que transmitem confiança a todos, dos mais humildes aos mais ilustres.
Mas existe ainda a terceira categoria de líderes, a dos que se perdem no meio das outras duas categorias. Inicialmente, eles escolhem a força como uma maneira de adquirir genuína liberdade e justiça. Mas, a meio caminho, deparam-se com as consequências destrutivas e chocantes da violência. Eles experienciam a revelação; percebem que violência gera violência. Matar deteriora o assassino tanto quanto a vítima, senão mais. Os que foram mortos estão mortos, mas aquele que mata deve viver com a sua culpa, com as suas memórias e com as consequências de seus atos. Entre os líderes que passaram por tal transformação, incluem-se o imperador indiano Ashoka, São Paulo (a caminho de Damasco), o profeta Mohammed, talvez Mao Tsé-Tung, Nelson Mandela, e, possivelmente, Gerry Adams e Martin McGuinness.
O herói de Buda e o terrorista, Angulimala, encontra-se nessa terceira categoria.
Angulimala nasceu na mais baixa casta da Índia. Ele vivenciou a injustiça, a discriminação e a miséria imposta pelas altas castas à sua família e a seu povo. Dia após dia ele sofreu e testemunhou a opressão sobre sua comunidade. Por fim, ele não pôde suportar mais essa situação e empunhou uma espada dada a ele por um mágico, almejando o poder através da violência. Mas seus objetivos eram nobres. Ele queria estabelecer a justiça para seu povo oprimido.
A estória começa no ponto em que Angulimala está aterrorizando cidades e vilarejos, assassinando homens, mulheres e crianças, com o objetivo de libertar a sua casta.
Em uma de suas violentas missões, ele se escondeu numa floresta, no norte da Índia. Enquanto o povo da região estava completamente aterrorizado e confuso, incapaz de lidar com o terrorista, o renomado mestra da compaixão da época, Buda, que era, da cabeça aos pés, destemido e pacífico, foi de encontro a Angulimala e o confrontou. Isto foi um choque, uma virada na vida do terrorista.
A estória gira em torno das seguintes questões: O que acontece quando um homem comprometido com a violência encara um homem comprometido com a não-violência? Quem é o mais poderoso? Quem influenciará quem?
Os líderes políticos atuais costumam dizer que não conversam com homens de violência; que conversar com terroristas os encoraja. “Não vamos dialogar com terroristas até que eles renunciem a violência e se desfaçam das armas”, proclamam os políticos.
A visão de Buda é exatamente oposta. Ele considera muito fácil dialogar com quem é amigável e não oferece perigo. O real desafio é conversar com quem é violento, com quem discorda, com quem se opõe e ameaça. A violência externa é apenas um sintoma, a manifestação de algo mais profundo. É através do diálogo, apenas, que os perpetradores da violência e as vítimas dela podem descobrir suas causas mais profundas - e encontrar meios para dissolver a discórdia. É preciso ir além do óbvio e engajar-se em questões mais essências, de modo a encontrar soluções verdadeiras e duradouras.
O terrorismo não é um fenômeno recente. Quando povos oprimidos desafiaram a ordem estabelecida e se movimentaram contra ela, as classes dominantes os cunharam como “o mal”, e se esforçaram em suprimir a rebelião, ignorando suas causas (mesmo se eles usassem métodos não-violentos, como a desobediência civil). Jesus Cristo foi uma ameaça às autoridades, portanto ele foi crucificado. Mahatma Gandhi, Martin Luther King e Nelson Mandela foram presos. Steve Biko e Ken Saro-Wiwa assassinados violentamente. Dalai Lama exilado. Há uma larga sucessão de defensores da independência de seus respectivos países que foram designados como terroristas, presos ou até mortos, seja na Asia, África, Austrália ou Europa.
Se as autoridades dominantes foram desafiadas por meios pacíficos ou violentos, pouco importa, pois onde quer que o poder tenha sido questionado a resposta veio com medidas violentas. Se a oposição estiver armada, ambas as partes lutarão. O jogo de gato e rato se firma, indefinidamente. Às vezes os dominantes são derrotados, como no caso das revoluções Russa, Francesa e Chinesa. Outras, os rebeldes são reprimidos, como nos movimentos democráticos da China e Burma. Mas nenhuma solução duradoura foi encontrada.
Na perspectiva Budista, toda violência organizada é “errada”, não importa que nome tenha: revolução popular, luta armada, terrorismo, defesa nacional, guerra santa, cruzada ou jihad. Violência é violência, não importa o pretexto ou o argumento. Todos os perpetradores da violência justificam suas ações de uma maneira ou de outra. Al Quaeda tem clara a sua missão. Opõe-se às bases militares americanas na Arábia Saudita - uma terra santa - bem como se opõe a política internacional americana, que apoia a ocupação de Israel na Palestina. Mas o governo americano tem razões e explicações para suas políticas. Eles querem expandir a “liberdade e a democracia”. Querem prover segurança.
Se a violência é legalmente sancionada ou ilegalmente organizada é uma questão de validade temporal. Os rebeldes de hoje podem ser os dirigentes de amanhã. Em todo caso, aquele que detém o poder é quem faz as leis e as interpreta. As leis mudam conforme o tempo e a circunstância. Mas existe uma regra de ouro que não muda de acordo com o capricho de um poderoso de qualquer tempo. A regra é: não faça para os outros o que não quer que façam para você. Osama bin Laden não deveria fazer para os Estados Unidos o que não queria que eles fizessem à seu povo. Americanos não deveriam fazer aos iraquianos, o que não queriam que estes fizessem para si. Os Estados Unidos não permitiriam que a Arábia Saudita, ou qualquer outro país, estabelecesse bases militares em seu território. Então por que o mesmo E.U. deveria manter bases militares em terras estrangeiras? O exemplo de Buda e Angulimala mostra que, no final das contas, todas as partes devem entrar em negociação para resolver disputas e diferenças e precisam estar de acordo em não utilizar métodos violentos, como homicídios, guera, tortura e humilhação, caso queiram realmente viver em paz.
Saddam Hussein desafiou as autoridades americanas e Osama bin Laden atacou as Torres Gêmeas, em Nova York [3]. Em contrapartida, os Estados Unidos desafiaram as autoridades de Saddam Hussein e Osama bin Laden, ao invadir o Iraque e o Afeganistão. Agora sabe-se que a Coreia do Norte tem armas nucleares. Se os Estados Unidos e a Inglaterra atacarem a Coreia do Norte, por que não deveriam atacar também o Irã? Cuba? Burma? Paquistão? Israel? Índia? Onde isso vai acabar? As pessoas se perguntam: “Porque é tão naturalmente aceitável que alguns países tenham armas nucleares e outros não?
Se a violência é cometida em nome da democracia ou da religião, ainda assim é violência. Ao longo da história, é possível observar como em nome da religião e de Deus, massacres e atrocidades tem sido perpetrados. Hindus perseguiram Budistas. Muçulmanos e Hindus mataram-se uns aos outros. Judeus perseguiram Cristãos e esses, por sua vez, perseguiram Judeus. Católicos e Protestantes brigaram entre si. Xiitas e sunitas trucidaram-se.
Da mesma maneira, milhões de pessoas foram mortas e terríveis guerras foram travadas, seja em nome da democracia, ou por líderes de guerra democraticamente eleitos. Hitler assumiu o poder através do voto popular, mas esse processo democrático não o impediu de atacar países vizinhos, nem impediu que ele matasse judeus em campos de concentração. O presidente dos Estados Unidos que deu a ordem para lançar as bombas nucleares em Hiroshima e Nagasaki foi um líder democraticamente eleito. A democracia não foi nenhum impedimento contra a matança de homens, mulheres e crianças inocentes dessas duas cidades japonesas. Políticos eleitos democraticamente de vários partidos na Índia lideraram cruel repressão de rebeldes na Caxemira, levando morte e aflição para milhares de pessoas. A Índia é tida como um dos países mais democráticos no mundo. Isto redime suas ações na Caxemira?
Eu poderia seguir listando mais atrocidades cometidas por políticos democraticamente eleitos. O suficiente para dizer que nem Deus, nem democracia são, em si, garantia de civilidade, sanidade e paz. Nem Deus, nem democracia são a origem primeira da justiça, da paz e do respeito mútuo. As religiões e as instituições democráticas precisam abraçar a não-violência como um princípio primordial. Sem a não-violência, religião e democracia são noções vazias e sem sentido. Todo esforço em impor valores religiosos e democráticos, ou qualquer outro valor, por meio das armas, tanques e bombas, acaba em sofrimento humano.
Tanto faz se a guerra é santa ou por democracia. Não interessa se o terrorismo é por autodeterminação. O sofrimento gerado por atos violentos não é menor, apenas pelo fato de ter sido feito em nome de Deus, da democracia ou da libertação. Portanto, uma guerra contra o terrorismo que usa e justifica métodos violentos é, também, terrorismo, mas com outro nome. Em realidade, o problema não é o terrorismo, é a nossa fé na violência.
A fé na violência tem uma longa história. Em certas épocas, aqueles com pontos de vista diferentes foram acusados de heresia e queimados em fogueiras. A violência levou comunistas a matar capitalistas. Os comunistas dissidentes, como Trotsky, Soljenítsin e Sakharov, foram mortos ou exilados. Capitalistas mataram comunistas no Vietnã, no Chile, na Espanha. Nos Estados Unidos, na época de McCarthy, houve uma caça aos comunistas: escritores proeminentes que criticaram o governo foram considerados “antiamericanos”. Olhando por esse lado, o atual problema com o terrorismo não é diferente do comunismo, nazismo, capitalismo ou qualquer outro “ismo”.
Russos e tchecos, indianos e caxemires, tâmiles e cingaleses, no Sri Lanka, maoistas e o governo nepalês e muitas tribos guerreiras na África, todos estão lutando por boas causas: pela integridade de seus país, por soberania, por independência, por autodeterminação, por democracia, por Deus, por interesses nacionais, por segurança. No entanto, eles estão conseguindo alguma coisa? Estão indo a algum lugar? É impossível derrotar o mal com o mal? Todas as nações advogam comedimento e diálogo para as outras, mas, quando se trata de sua própria maneira de fazer política, tudo descamba em violência. Quando estão no poder usam suas forças armadas. Não se dão conta de que violência e boas causas não se misturam; são tão diferentes quanto água e vinho. Se uma pessoa usa violência e outra chama isso de “mal”, e usa de violência para deter a primeira, a segunda pessoa torna-se também maldosa, porque está usando os mesmos meios. Quem levanta a mão mais alto pode proclamar vitória, mas tal vitória não é o mesmo que “o bem”.
Aqueles que usam a violência, basicamente, escolhem o caminho do raciocínio estreito, o caminho hegemônico: um Deus, um poder supremo, um sistema político. A monocultura mental encoraja a perseguição das bruxas, dos negros, gays, lésbicas, imigrantes, minorias, liberais, feministas, comunistas e por aí vai.
E a humanidade ainda não cansou da violência, ao que parece. Juntas, nações de todo o mundo despendem cerca de um trilhão [4] de dólares anualmente, na organização, treinamento, equipagem e prática de métodos violentos. Esse crescimento em gastos militares, todavia, não aumentou, nem um pouco, o senso de seguridade no mundo. Pelo contrário, quanto mais gastos militares são feitos, mais cresce o sentimento de insegurança e ansiedade. Se uma pequena fração desse dinheiro e desses recursos fosse investida na promoção da não-violência, em negociações, na resolução coletiva de conflitos, notaríamos a redução do terrorismo e a segurança crescente.
O país que mais gasta em violência institucionalizada é os Estados Unidos – o líder do, assim chamado, mundo civilizado – como se um maior gasto em armamentos fosse um sinal de civilização avançada! Isto é civilização? Certa vez, Mahatma Gandhi foi inquirido por um jornalista europeu: “Senhor Gandhi, o que o senhor acha da civilização europeia”. Ao que Gandhi respondeu: “Seria um boa ideia!!”. Sociedades obcecadas com violência, com superioridade militar, com o acúmulo de armas nucleares, não podem ser chamadas de civilizadas. Estas sociedades são felizes armando-se até os dentes, enquanto milhões de pessoas ao redor do mundo sofrem com a fome, secas e doenças. Ainda assim, nações ocidentais arrogam-se civilizadas, guardiãs da democracia, protetoras da liberdade. A linguagem perdeu o seu sentido quando “democracia” passou a significar domínio, quando “civilização” virou sinônimo de massacre de inocentes.

Trad. Josemar Vidal Jr.

NOTAS (do tradutor):

[1] Texto publicado como prólogo do livro The Buddha and the teorrorist, de Satish Kumar, 2005. O título original é Talking to terrorists e apesar do objetivo específico ser um prólogo, funciona perfeitamente como uma artigo sobre a violência e as instituições permissivas a ela.
[2] Sob o pretexto de encontrar supostas armas de destruição em massa, Estados Unidos e Inglaterra invadiram o Iraque, em março de 2003.
[3] Na verdade, essa teoria, atualmente, tem sido refutada, devido as várias provas de que as duas torres foram implodidas, entre outras coisas. Ou seja, elas não cederam apenas com o impacto dos aviões. Sendo assim, ficaria muito difícil atribuir o atendado a Bin Laden, ou apenas a ele, pois tal ação exigiria uma organização e apoio muito forte de dentro dos Estados Unidos.
[4] Dados atuas já falam em torno de 1.7 trilhões de dólares.